como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. A nova Pangea e as ilhas: utopia e realidade no processo de Planejamento Ambiental e Turístico. Anais do Seminário I Jornada de Turismo, Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. São Paulo: Unibero, Editora Aleph, MJ Livros, 2001, p. 41-47.
O planejamento pretende ser um processo racional de análise (diagnóstico) e decisão a partir do conhecimento sistemático da realidade e suas tendências (prognóstico), definindo instrumentos e recursos para reorientar processos em curso para metas desejadas (Maffei, 1989; Ignara s/d). O planejamento territorial se insere nesse contexto geral do planejamento e coloca questões específicas de ordem multidisciplinar decorrentes da compreensão socioecológica do espaço. A partir desse entendimento, apresento algumas questões para discussão que, desejo deixar claro, não estão fechadas para mim; são, de fato, questões para reflexão e debate.
A preocupação com a organização do ambiente é antiga e produziu inúmeras teorias sobre os meios e formas de adequar o espaço aos usos e funções do trabalho e do bem-estar humano. Boa parte dessas teorias, que tendem a resultar em modelos abstratos, têm um forte componente utópico1 e talvez autoritário, em parte decorrente do caráter idealista que assumem. O não-lugar da utopia, ou nenhum-lugar, é uma idealização, que reordena o ambiente e os valores independentemente da identidade que historicamente se forma como característica de um lugar (Sandeville Jr., 1993). É o exercício de antecipação imaginativa do modelo de um outro-lugar, no qual os seres, as coisas e as relações encontram uma harmonia através de outra ordem (preestabelecida) e ausente no lugar de origem. Seu aspecto positivo está na mobilização de um desejo de melhores condições coletivas e na investigação de um modelo alternativo, ainda que geralmente coerente e unificado em um conjunto exclusivista. É uma visão crítica e questionadora das condições de vida, através da metáfora de um outro lugar. É inegável a força que as utopias tiveram na construção do ambiente, deixando de ser peça literária ou teórica.
Inúmeros conceitos e modelos para desenho e planejamento das cidades foram desenvolvidos e implementados ao longo do século 20, e não cabe aqui percorrê-los. Em todo o mundo, os pressupostos modernos de racionalidade foram questionados a partir dos anos 60 e o novo paradigma de conhecimento e comportamento que emergiu ao lado dos pressupostos teóricos da “crise da modernidade”, após a II Guerra, foi o do ambientalismo (Sandeville Jr., 1999). As utopias, e o caráter idealista implícito na visão totalizante do planejamento racionalista, passaram a ser vistas com suspeita. Entre as muitas causas, podemos encontrar o desânimo decorrente das (se me permitem) “anti-utopias” mobilizadas pelos regimes autoritários após a Grande Depressão, o relativismo cultural que no pós-guerra passou a nortear a percepção e entendimento das diferenças sociais e talvez até mesmo o pragmatismo voltado para a eficiência operacional e para o consumo que marca a cultura contemporânea. Na “condição pós-moderna” a visão totalizante da utopia foi substituída pelo fragmento, pela incongruência e pela indeterminação (Santos et. al., 1994). Segundo Arnaldo Jabor (citando Pierre Levy), o atual momento substitui o conceito de história: “...a humanidade teve três períodos filosóficos: 1- o das sociedades primitivas fechadas, que viviam numa totalidade sem universal; 2- o das sociedades ‘civilizadas’, com base na escrita, que tinham um universal totalizante; 3- o da cibercultura, que inventa um universal sem totalidade” (Folha de São Paulo, 27/01/98, ilustrada p. 4).
No seu aspecto negativo, a utopia é incapaz de responder plenamente às necessidades de mudança exatamente pelo seu distanciamento do lugar, o espaço histórico das trocas e contradições sociais, da formação de identidade, ao ponto de alguns estudiosos proporem o termo diametralmente oposto de topofilia (Tuan, 1983) ou entopia (Dubos, 1981), isto é, a afeição com o lugar. Tais discussões alimentaram as investigações e proposições do planejamento territorial e urbanístico sobretudo após as críticas ao modernismo na década de 60, que correspondem também a uma necessidade quase tátil de participação e de profundos questionamentos, boa parte dos quais, purificados de seu caráter romântico e semi-anárquico, foram institucionalizados nas décadas seguintes.
No Brasil, a década de 70 é marcada ainda por uma expectativa nas possibilidades do planejamento estatal, caindo em seguida em descrédito à medida que a economia se abria aos novos padrões internacionais. Entretanto, ainda em meio ao “milagre econômico brasileiro”, já se evidenciava a crise da ideia de progresso como suficiente para encaminhar as questões sociais, econômicas e territoriais. No Brasil, as questões ambientais foram tratadas de modo marginal, embora o país não pudesse se colocar totalmente alheio a esse fato, como demonstrou a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente em 1973, logo após, portanto, à Conferência de Estocolmo e, na década seguinte, com o surgimento de órgãos com atribuições específicas na questão ambiental também no nível estadual e municipal.
Curiosamente, o caráter utópico e totalizante deslocou-se do planejamento econômico e territorial (alvo de grandes questionamentos) para o planejamento ambiental, o que representa, talvez, o desejo de uma certeza que compensasse a ausência de verdades no conformismo individualista e pessimista e no hedonismo que sucedeu às revoluções dos anos 60. É notável que um dos mais característicos aspectos (o paradigma ambiental) da “pós-modernidade”, tão avessa segundo se diz às utopias, guarde um aspecto totalizante e utópico. O que não me parece contraditório e sim convergente a outros aspectos da pós-modernidade (nos termos de discussão propostos por Feartherstone, 1995).
Nos últimos 30 anos, desde o documento do Clube de Roma e da Conferência de Estocolmo, foram publicados uma série de importantes documentos internacionais, postulando um novo paradigma para a questão ambiental, difundindo-se a partir dos anos 80 o conceito de desenvolvimento sustentado. Esses documentos apresentam um caráter universalista claro, preconizando paradigmas de um novo comportamento frente a crise ambiental e energética, com tênue reconhecimento das desigualdades sociais, políticas e econômicas (embora o fato seja sempre citado), e com um grande apelo para uma nova unidade entre os povos, que redunda em preceitos para uma nova ordem internacional e jurídica que expresse essa ordem e responsabilidades globais pretendidas.
Inúmeros estudos têm denunciado, nesse contexto, os custos desiguais da degradação ambiental e das responsabilidades da conservação, do que poderíamos tomar como exemplo, embora de caráter mais geral, a manifestação anti-Davos ocorrida em Porto Alegre em 2001. Ocorre ainda que conceitos usualmente empregados não estão definidos em bases científicas embora gozando dessa autoridade, como o de “capacidade de carga”, e que o conhecimento dos ecossistemas tropicais ainda é preliminar, preservando uma dose de visão romântica e poética subjacente no discurso tecnicista do preservacionismo.
Estas condições intelectuais e ideológicas preservam, para a expectativa do planejamento contemporâneo, um aspecto utópico (de que é possível um mundo harmonioso e equilibrado) que pode implicar em certo grau de arbitrariedade e autonomia em relação ao mundo cotidiano das pessoas e técnicos não iniciados. Corre-se o risco de sobrepor-se um todo abstrato e independente ao real, que a ele deve moldar-se em função de um conhecimento técnico, de um discurso ideológico e de um quadro institucional. Esta tendência é parcialmente reorientada por dois fatores também recentes: a participação social nos processos de gestão e a falência do Estado investidor, fatores cujo quadro integra a questão do planejamento nas últimas décadas. Particularmente a participação social poderá se tornar decisiva nos rumos desse processo, constituindo-se como meio de reprodução de comportamentos ou manipulação política, ou, ao contrário, em exercício de cidadania e discussão da questão ambiental. Integrando o processo de planejamento, poderá minimizar a estereotipagem dos planos produzidos por prestadores de serviços especializados mas desvinculados do processo local.
O Planejamento Turístico, no que se refere à sua dimensão territorial, é herdeiro dessas tradições. O que significa que partilha dos antecedentes do desenho ambiental e dos impasses operacionais que o precederam. A base metodológica advém das experiências anteriores, e seu caráter totalizante é visto a partir de um segmento da atividade social e econômica, procurando ou preconizando cada vez mais a visão integrada das questões turísticas com aquelas de natureza ecológica e social. No momento em que o tempo livre tornou-se uma das empresas mais lucrativas e que mais empregam na sociedade global (nada a ver com a distribuição, que é a grande questão), é vista como uma esperança ou saída limpa para impasses de desenvolvimento sustentado. Nesse sentido, é quase óbvia a necessidade de conservar as bases sobre as quais esse deslocamento em massa se apoia e elabora seus produtos que, em geral, têm como atrativos aspectos da natureza e da cultura (não apenas do chamado patrimônio histórico-cultural). O que só pode ser obtido através do controle do acesso aos recursos e do controle do comportamento por essas empresas - e poucas formas de controle podem ser mais eficientes do que aquela decorrente de uma autoimposição em função de convicções e padrões (ideo)lógicos compartilhados.
O que significa a dupla rejeição da utopia e da percepção da historicidade da prática social, sem o que os planos se restringem à reprodução de procedimentos metodológicos e deixam de ser um processo efetivo de investigação? O que significa a quantidade de planos elaborados nas secretarias públicas e escritórios particulares, que não chegam a se implantar, e não se propõem processualmente, perdendo a oportunidade de interpretação de necessidades sociais efetivamente sentidas e partilhadas (dando a impressão de peças políticas, retóricas ou de mera prestação de serviços)? O que significa, do ponto de vista metodológico (sobretudo nos estudos ambientais) a busca de simulação probabilística e de modelagem de previsões de desempenho, independentemente do desejo de um outro lugar e da compreensão do próprio lugar? O planejamento turístico, inserindo-se de uma forma pragmática, irrefletida e não avaliada nesse contexto, não corre o risco de se tornar uma peça retórica ou um instrumento de cerceamento e exclusão da experiência do lugar? Na reconstrução da pangea2 através da informação e na compreensão do mundo enquanto ilhas3 nesse mundo globalizado que se procura institucionalizar segundo um projeto, do qual não participamos da elaboração mas partilhamos as certezas politicamente corretas das novas formas de comportamento preconizadas, na verdade se evidenciam, durante a festa, questões urgentes mas insistentemente não respondidas pela sociedade brasileira globalizada. Nesse contexto, o que se pretende racionalizar com o processo (ou sua ausência) de planejamento? O que significa, efetivamente, o turismo para a sociedade brasileira?
É necessário romper o discurso retórico da parte de políticos, técnicos, empresários e associações. Para isso me parece fundamental a investigação da base metodológica e ideológica do planejamento e o desenvolvimento de abordagens a partir das especificidades da realidade local, adequando e reinventando as questões de caráter universal em uma dialética com aquelas de caráter local. Contrapõe-se ao aspecto tecnicista do planejamento, aspectos sensíveis e culturais locais, recuperando em outros termos a racionalidade pretendida do processo. Mais que isso, é necessário romper o silêncio social sobre as tantas questões não respondidas e quanto ao planejamento estabelecer uma discussão ampla e aberta sobre as realidades que se deseja planejar e os processos para isso.
Notas
Bibliografia
como citar:
SANDEVILLE JR., Euler. A nova Pangea e as ilhas: utopia e realidade no processo de Planejamento Ambiental e Turístico. Anais do Seminário I Jornada de Turismo, Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. São Paulo: Unibero, Editora Aleph, MJ Livros, 2001, p. 41-47.